O terno

Teve um senhor que trabalhou muitos anos com meu pai e quando esse senhor faleceu, a família ligou em casa e, após dar a triste notícia, disse que esse senhor a vida toda tivera um sonho, o de ser enterrado de terno.


Meu pai nesse dia estava na fazenda em outro Estado e nessa época ainda não existia celular, mas minha mãe, com um coração cheio de misericórdia e, como o terno era do meu pai e não dela, prontamente realizou o desejo do recém defunto.


Abriu o guarda roupa do meu pai e pegou um terno xadrez, olhou para a vestimenta que se transformaria em mortalha e disse: "acho que esse terno de príncipe de Gales seu pai não vai usar mais."


Principe de Gales é o nome de um tipo de xadrez, mas aquele estava mais pra terno do "príncipe Falcão", rei do brega.


Pegou o terno, e pediu pra alguém levar na funerária onde estava o desejoso defunto e aproveitou para mandar os sentimentos e uma desculpa esfarrapada para não ter que ir ao velório.


Minha mãe odeia velório. Ninguém gosta, mas ela exagera. Quando chega em casa do tal evento fúnebre, ela tira o sapato ainda dentro do carro e vai direto pro banheiro e, com os calçados em uma das mãos, liga a água quente do chuveiro e entra em baixo. 


As vezes eu pergunto do que o indivíduo morreu, pode ser algo contagioso, mas na maioria ou é velhice ou acidente, duas coisas que não pegam, mas mesmo assim ela tem o cuidado profiláxico de lavar da cabeça aos sapatos, literalmente, após chegar de um enterro.


Quando meu pai chegou da fazenda, que ele ficava quase um mês, a primeira coisa que minha mãe contava era o obituário da cidade, a segunda era se a gente tinha dado trabalho.


Quando minha bondosa mãe contou que havia dado o terno "príncipe Falcão" para enterrar o referido senhor, meu pai, primeiro ficou sem cor. Achei que ele gostava muito desse senhor, mas não lembro dele comentar em casa sobre o mesmo.


Depois a cor foi voltando, e ele foi ficando roxo, mas de nervoso. Deu pra perceber pelo tom exacerbado da voz dele que aquele mineiro calmo estava bravo, muito bravo. 


Nunca imaginei que meu pai gostasse tanto de um terno. Fiquei até feliz quando minha mãe deu aquela obra de arte do mau gosto, mas pelo visto meu pai não gostou nem um pouquinho.


Ele olhou pra minha mãe e gritou: "vc vai desenterrar esse homem e trazer de volta o meu terno."


Toda vez que meu pai ficava bravo com algo que minha mãe tinha feito, ela enfrentava ele com o magnífico salário de professora dela e dizia em tom firme, e dessa vez, não foi diferente: "eu compro outro com o MEU dinheiro de professora e não vou desenterrar ninguém" (quem escuta minha mãe dizer essa frase acredita que professor ganha muito bem no Brasil).


Mas dessa vez a afronta não foi suficiente para acalmar o leão que estava dentro do meu pai. E o tom de voz ficou ainda mais alto: "eu quero aquele."


Eu não sei onde ela iria encontrar outro terno xadrez tecnobrega, que não servia nem pra casamento de festa junina, a única utilidade mesmo daquela roupa foi enterrar o tal senhor e espero que as flores tenham escondido a estampa da referida vestimenta.


Comecei achar que o terno era presente de alguém especial, aí seria mais um motivo para minha mãe não desenterrar nunca.


Mas não era isso 


Dentro do terno tinham varios bolsos falsos onde meu pai guardava dólares. E não era pouco.


Agora a história começou fazer sentido. Ele não queria o terno, queria os dólares.


Minha mãe respondeu que não sabia onde o morto havia sido enterrado com a fortuna em moeda estrangeira do meu pai. Mas isso era fácil descobrir, pensei eu, difícil seria abrir a cova para pegar o terno.


Fiquei imaginando aquela senhora fina, com cara de bem alimentada, vilipendiando túmulo, e túmulo de pessoa desprovida de bens materiais, pois nem dinheiro para comprar um terno no brechó a família do falecido tinha, nem fazendo vaquinha. Ou era o caixão ou o terno. O povo ia achar que minha religiosa mãe estava fazendo macumba, enterrando coisa em cemitério, porque nunca ninguém iria sonhar que aquele homem, ali enterrado, que fora pobre a vida toda tinha ficado rico depois de morto, com um monte de verdinhas do tio San no bolso.


Minha delicada mãe seria pauta do dia na Rotativa, que era o noticiário da rádio local na hora do almoço: "elegante senhora da sociedade foi presa ao violar túmulo de pessoa menos favorecida, alegando estar a procura de dólares de seu marido", e no final Ely Simões arrematava: "Dona Nini, se não quer que seu nome apareça, não deixe que o fato aconteça." (imortal bordão de Ely Simões, com todo meu carinho e respeito).


Voltando a realidade.


E, em casa quando não se sabe o que faz a gente liga para o meu irmão do meio. E foi o que minha mãe fez. 


Eu continuava na sala. Esperando o desfecho da tragédia ou a solução milagrosa que o "bracinho direito", que é como ironicamente a gente chama meu irmão do meio, iria dar.


Minha mãe saiu a toda com o corcel 2 dela, que tinha o apelido de Empadão. Não demorou nem 40 minutos e ela estava de volta com um terno xadrez na mão.


Pensei comigo: ela deve ter subornado o coveiro com o magnífico salário de professora dela, porque nunca vi desenterrar uma pessoa tão depressa.


Meu pai quando viu o terno, respirou aliviado. Colocou a mão no bolso e as benditas verdinhas estavam ali. 


Quer saber como minha mãe desenterrou o defunto?


Ela não desenterrou. Meu irmão do meio lembrou que tinha um outro terno xadrez do meu pai na casa dele, e deu a idéia de levar esse pro meu pai, e dizer que tinham desenterrado o defunto e os dólares não estavam mais no bolso do casaco. Só que os dólares estavam no casaco xadrez que estava na casa do meu irmão e não haviam sido enterrados com o infeliz defunto.


E o que virou dos dólares? Quando minha mãe descobriu o esconderijo ela vendeu, mas o terno xadrez ainda está no armário.


Vão-se os dólares, mas ficam-se os ternos. Eis minha herança. Bjs.

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