O piano que tocava sozinho.

Senta que lá vem história novamente.

O piano que tocava sozinho.

É comum cidades do interior terem velhos casarões abandonados que têm fama de mal assombrados. 

Colina, em São Paulo, a capital do cavalo tinha um casarão ao lado da linha de trem e a história era que a família toda havia morrido e o casarão estava fechado desde então.

Em Taiuva, também em São Paulo, o casarão ficava em uma esquina, e a estória era bem parecida, a família tinha morrido toda em um acidente e diziam que a casa estava como haviam deixado no fatídico dia, até com as louças sobre a mesa do café, dando a impressão que iriam voltar a qualquer minuto. 

Taiuva, além do velho casarão também tem a rampa do cemitério, onde qualquer carro consegue fazer a subida até o portão do cemitério sozinho. Diziam que eram os habitantes das tumbas empurrando o carro, mas na realidade é apenas uma ilusão de ótica, pois como a rua que passa em frente ao cemitério é uma descida íngrime, a rampa em frente ao portão também é uma descida, mas não tão íngrime.

Em Bebedouro, também no Estado Paulista, minha terra natal, havia igualmente um velho casarão abandonado e, como era de se esperar, pertencia à minha família.

Já contei que minha família veio parar no Brasil por causa da Santa Inquisição, quando os soldados de Cristo invadiram o território que hoje é a Bélgica e meus ancestrais tiveram que pedir asilo em Portugal, pois uma antepassada era curandeira e por isso meu sobrenome é Caldeira, tradução de Keteler que quer dizer caldeira ou chaleira, utensílio que as ditas “bruxas” usavam para fazer suas poções.

Voltando.

O velho casarão ficava na mesma rua que leva o nome do meu bisavô, Rua Coronel Conrado Caldeira, esquina com a Rua Antônio Alves de Toledo. Eu não cheguei a conhecê-lo, foi demolido antes de eu nascer, mas ainda tem fotos na internet dele. 

Meu bisavô era mineiro, da cidade de Salinas, chegou a cursar direito em Salvador na Bahia, mas teve que abandonar quando o pai morreu para assumir os negócios da família. 

Meu pai contava que tinham um armazém e moravam em cima dele e, a senzala também ficava na parte de baixo da casa, só que nos fundos. 

O andar de cima o piso era de tábuas e no dia em que meu tataravô morreu, os escravos batiam nessas tábuas para que os vidros com pedras preciosas caíssem e quebrassem para assim pegar as pedras que passavam pelo assoalho, enquanto acontecia o funeral na parte da frente da casa.

Vou fazer um parênteses.

Quando minha família chegou ao Brasil se tornaram em pouco tempo contratadores de diamantes, tipo um fiscal do rei de Portugal para controlar as minas de ouro e pedras preciosas das Gerais, por isso tinham tais vidros com essas preciosidades.

Voltemos.

Ao assumir os negócios da família, meu bisavô vinha fazer compras no Estado de São Paulo, passando muitas vezes em Jaboticabal, que, segundo meu pai, era onde terminava a linha do trem, só bem depois que o transporte ferroviário chegou em Bebedouro.

Nessas idas e vindas para abastecer o secos e molhados, conheceu uma alagoana de nome Júlia, da família Pinto, com quem se casou. 

E, depois de casado resolveu mudar o ramo de negócios para poder passar mais tempo com a família.

Já conhecia Jaboticabal, cidade próxima à Bebedouro e, também já havia ouvido falar do ouro vermelho: o café, então no início do século passado, vendeu tudo em Minas e veio para São Paulo comprar duas fazendas de café a Santa Júlia e a São Juliano. 

Vou fazer outro parênteses.

O amor pela minha bisavó era tamanho que as duas fazendas faziam referência ao nome dela.

Voltemos.

Deixou seu irmão Pacífico tomando conta dos negócios em São Paulo e voltou para buscar o resto da família.

Meu avô Synval foi o último filho a nascer em Minas, precisamente no dia 29 de janeiro de 1900, por isso eu calculo que meu bisavô se instalou em Bebedouro, mais precisamente no distrito de Botafogo, no início do século passado.

Eu nunca fui à Salinas, talvez um dia eu vá, mas toda vez que atravessava o Rio Grande, que é divisa dos Estados de Minas Gerais e São Paulo, meu pai fazia questão de contar que minha bisavó havia atravessado tal rio dentro de um tacho puxado por dois cavalos. 

Eu ficava imaginando uma senhora robusta atravessando aquela correnteza e pensava que eu não gostaria de passar por aquilo, ainda mais carregando um filho de meses nos braços, que quase falecera na viagem, não por causa da travessia, mas por ter vindo quase toda a viagem chupando um pedaço de queijo para matar a fome.

Chegando por estas bandas não sei ao certo onde se instalaram. Sei que minha tataravó  e duas filhas ficaram em Jaboticabal e minha tataravó se casou novamente.

Quando era pequena lembro de ter ido ver uma ruína de um antigo casarão de fazenda que falavam que era a sede da Fazenda Santa Júlia, mas não sei dizer ao certo onde ficava.

Na cidade de Bebedouro, meu bisavô morou no mínimo em três casas, as quais tenho conhecimento. 

A primeira ficava na esquina da Rua São João com a Rua Rubião Júnior, e foi nessa casa que meu avô Synval conheceu minha avó Marianna que morava no meio do quarteirão. 

A segunda casa ficava na Rua Conrado Caldeira com a Rua Antônio Alves de Toledo e a terceira a poucos quarteirões, na última rua.

Minha bisavó adorava tocar piano, passava o dia sobre seus teclados. Meu bisavô não gostava de barulho (talvez isso seja hereditário, mas é história pra outro “causo”) e, por isso minha bisavó pedia a um empregado para ficar vigiando para ver quando meu bisavô iria chegar. 

Era ele apontar no início da rua, que o moleque corria até minha bisavó e dizia: “Sinhá, o coronel tá chegando.” Ela, mais que depressa colocava a faixa de feltro sobre as teclas de marfim do piano, fechava a tampa e ficava à espera do meu bisavô para atualizar os ocorridos da pacata vila de São João Batista do Bebedor, que nessa época já chamava Bebedouro.

Certo dia, sentada na poltrona em seu quarto, esperando meu bisavô fazer o toalete antes do jantar e aproveitando o tempo para colocar o assunto em dia, minha bisavó disse: “sabe marido, a mulher do coronel…” e parou a frase no meio.

Meu bisavô ainda fazendo o toalete se olhando no espelho da penteadeira, perguntou: ”o que tem, esposa?” Mas nunca ouviu a resposta, minha bisavó havia tido um infarto fulminante e falecera naquele dia.

Diziam que ela era bem robusta, a ponto das mucambas terem de lhe colocar os sapatos pois não conseguia envergar o corpo para tanto, e que foi por conta do peso que seu coração não aguentou. 

Depois que minha bisavó faleceu, não fazia sentido meu bisavô ficar naquele casarão, ele se mudou para uma casa, poucos quarteirões dali e era comum as pessoas passarem pelo casarão e escutarem o piano tocar, como se minha bisavó estivesse esperando o menino vir avisar que o coronel estava chegando para ela parar de tocar.

Anos depois a casa foi vendida e ao retirarem os móveis o velho piano ainda estava ali, coberto por tecidos apodrecidos pelo tempo e, em cima dele havia uma goteira e dentro um ninho de ratos que eram responsáveis por fazer tal instrumento tocar.

Talvez fossem os ratos, talvez fossem as goteiras, talvez fosse a alma de minha bisavó que tirava som do piano esperando meu bisavô chegar para contar as notícias da cidade, uma mulher que largou a família para formar a sua, saindo de Alagoas, para enfrentar o sertão paulista junto de seu amado, pois se não fosse pelo estímulo e apoio dela, ele teria ficado em Salinas, e não seria o Coronel que até hoje respeitamos e prestamos homenagem repetindo seu nome em seus descendentes.

Essa é a diferença que uma boa companhia faz na vida. Pessoas boas irão lhe fazer crescer, pessoas ruins só irão querer sugar. Sugar até o ponto de matar a galinha de ovos de ouro. Isso não diz respeito somente a marido ou mulher, mas a todas pessoas que rodeiam nossa vida.

Hoje meu bisavô além de dar nome à rua onde ficava o antigo casarão, também dá nome a uma rua no distrito de Botafogo, primeira moradia fixa dele em terras paulistas e a uma escola estadual. O nome da minha bisavó se encontra eternizado no hospital municipal da cidade. E eles dormem o sono eterno sobre a proteção do anjo da morte, uma escultura de anjo em mármore branco, com asas parecendo penas de verdade e que o olhar possui uma ilusão de ótica dando a impressão de que o ser angelical acompanha com o olhar as pessoas que passam em frente ao jazigo.

A escultura foi trazida da Europa e como minha bisavó, se arriscou por águas incertas para chegar ao seu destino e proteger o repouso deles.

Foto da casa que meu bisavô morou e diziam que o piano tocava sozinho:


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