O PERU DE NATAL
Lembro de quando era criança e ficava de férias, perdia a conta de que dia do mês ou da semana era. Agora com essa quarentena, além de perder essa noção, no Estado de São Paulo o governador adiantou os feriados, eu nem sei que ano estou, pelas contas dele já deve ser 2025. Tô mais perdida que bala no Rio de Janeiro.
Por isso eu coloco texto de maio em junho, comemoro o Natal em maio, e não dou feliz aniversário pra ninguém, tenho receio de esquecer e alguém achar que eu estou de mal.
Então, como nosso calendário Doriano está uma confusão, vou escrever um texto sobre o Natal, talvez acabe falando sobre o carnaval e segue o baile.
Minha mãe diz que sou o clone do meu pai por causa do gênio. Temos o mesmo gênio. Mas fisicamente eu sou minha mãe escrita, sou Betine. De Zaccarelli eu não tenho nem o sobrenome no registro. Eles são alegres, e eu sou quieta.
O italiano é por si só uma ópera, vai do trágico ao drama, passando pela comédia, sem desafinar. Eu e Zelito temos expressões de gato, ou seja, não nos alteramos com nada, exceto quando ficamos bravos, mas é difícil tirar a gente do sério.
Pelos textos as pessoas acreditam que sou mais comunicativa, mas não sou. Sou sistemática igual meu pai. Igualzinha. E por termos gênios fortes e iguais, muitas vezes "batíamos de frente". Era briga de cachorro grande.
Quando alguém fala que não tem briga na família, eu penso: essa pessoa não tem família.
Família que convivi, briga, mas perdoa. Perdoar não é esquecer. É deixar de doer. É ver a cicatriz na alma e não sentir mais nada no coração, nem mágoa, nem remorso, nem ódio... nada, nada mesmo.
É saber que aquilo foi necessário. Teve um propósito. Foi um mal para se ter um bem. "Não se faz omelete sem quebrar os ovos."
Não adianta querer driblar a fase da cura. A ferida leva um tempo para cicatrizar. É comum pessoas próximas querendo contribuir para que façam as pazes, mas muitas vezes só pioram mais a ferida.
Um braço quebrado leva um tempo para sarar, não adianta pedir para ele ficar bom em dois dias. Com a mágoa é a mesma coisa. Leva um tempo para curar.
Se meu pai ainda estivesse vivo, eu iria brigar tudo de novo, iria ficar de mal, ficar sem conversar por dias... até fazer as pazes para brigar de novo. A briga faz bem, colocamos pra fora o que está incomodando. Ruim é ficar ruminando o problema. Criando fantasmas que não existem.
Mas também não dá para levar tudo a ferro e fogo. Tem horas que engolir o sapo é difícil, mas dá para resolver a situação de uma forma menos agressiva que uma briga, um pouco mais irônica e nem tanto diplomática, mas que surta efeito e gere "causos" pra gente contar... como o que vou contar agora.
Era Natal, meu pai ainda era solteiro. Eu não sei se ele brigou com meu avô ou com minha avó, mas resolveu não passar o Natal com eles.
Já namorava minha mãe. Iria passar o aniversário de Jesus na casa da família dela. Mas só sua ausência era pouco para fazer pirraça para os pais. Tinha que ter um algo mais.
Minha bisavó Rita, mãe da minha avó Marianna, cozinhava muito bem, mas no natal era de praxe encomendar o peru no bar São Paulo que ficava na Rua São João, nem sei em que altura pois fechou bem antes de eu nascer.
Como meu pai estava brigado e não iria passar o Natal com os pais, resolveu cancelar o peru de Natal que minha avó havia encomendado no bar São Paulo sem dizer nada.
No dia 24 de dezembro, meu pai se arrumou, colocou um terno de linho 120, desejou feliz natal para a família dele, como se não tivesse tido briga nenhuma no dia anterior, entrou no Ods mobile verde e foi passar o Natal com a família da minha mãe.
Saiu mais cedo que de costume, disse que iria cumprimentar uns amigos antes de ir para a Fazenda Recreio, onde minha mãe morava, mas na verdade ele saiu mais cedo porque tinha cancelado o peru de Natal e precisava ir embora antes que meu avô chegasse da cidade com a notícia que não iria ter ceia natalina na casa dos Caldeiras.
Como já disse eu tenho o gênio do meu pai, e toda festa a gente brigava. Era o gran finale da festa. Se não tivesse pelo menos uma discussão, não tinha graça. Até no natal nós brigávamos. E, em um desses natais eu enfezei e resolvi não passar com ele. Seria o meu castigo pra ele. Não teriam minha presença.
Fui passar na casa do meu irmão mais velho, na família dos Stamatos.
Meus irmãos revezavam, passavam o Natal com a família da esposa e o ano novo com meus pais, igual criança de pais separados.
Voltando.
A ceia nos Stamatos foi chique. Teve coquetel de camarão servido em uma taça com gelo e cebolas empanadas, caviar, peru, pernil, arroz com passas, salpicão com passas, panetone com passas, só faltou feijão com passas... Tudo perfeito, mas eu só pensava em como estava o Natal na casa dos meus pais. Devia estar pior que cemitério em carnaval sem a tão esperada briga Zelito e Ana Paula.
Os Stamatos me convidaram para almoçar no dia seguinte, mas dois dias longe do Zelito era castigo demais e eu queria saber da festa de Natal deles, como tinha sido o peru.
Todo Natal, além da família da Sônia e dos meus primos do lado paterno, sempre vem uns amigos do meu pai, médicos e dentistas.
No dia 24 à tardezinha, minha mãe foi buscar o peru, mas voltou com a mão abanando.
Meu pai logo pensou: isso foi obra da Paula.
No dia 25 de dezembro eu apareci na hora do almoço na casa dos meus pais. Fui levar o presente dele, já tinha comprado mesmo, era uma caixa de correio e pegar meu envelopinho.
No Natal meu pai fazia um envelope para cada filho com uma quantia de dinheiro e pendurava na árvore. Tem horas que não compensa ficar brigado, ainda mais se tem um envelopinho com dinheiro pendurado em uma árvore de Natal te esperando.
Peguei meu envelope. Abri. Fiquei feliz com a quantia, era mais do que eu tinha gastado com o presente dele, bem mais. Valeu fazer as pazes.
Sentei a mesa pra almoçar e em vez do tradicional peru de Natal, minha mãe colocou um frango.
Um frango!!! Pensei eu. Achei estranho e aí fiquei sabendo a história.
Meu pai contou que, há muitos anos, na véspera de um natal ele brigou com os pais e cancelou o peru. E quando nos (eu e ele) brigamos uns dias antes, ele lembrou da história e, como temos gênios iguais, ele achou que eu fosse cancelar o peru. Quando minha mãe chegou da quituteira sem o prato principal da ceia, ele teve certeza que tinha sido arte minha, mas não foi eu que cancelei o peru.
A mulher que fazia a tradicional ave natalina passou mal e não pode entregar as encomendas e minha família ficou sem peru na noite de Natal com a casa cheia de visitas.
Minha avó Marianna deve ter rido com gosto no céu de ver ele passar o mesmo apuro que ela.
É, aqui se faz aqui se paga.
O texto hoje vai pra Laura, a mulher que fazia o melhor peru de Natal do mundo.
E um feliz natal em junho pra tudo mundo.
Bjs
Comentários
Postar um comentário