Senta que lá vem história.
Tic tac... Tic tac..
Era de madrugada. Eu ainda morava com meus pais. E durante a noite, devido ao silêncio, os mínimos ruídos se tornam baterias de escola de samba, ainda mais para mim que não gosto nem um pouco de barulho.
Talvez porque nasci em uma casa onde só tivesse adultos e para acessar o mundo de faz de contas de criança eu tinha que me socorrer na leitura e para saborear um bom texto nada melhor que o silêncio, principalmente o silêncio noturno e com isso eu me tornei uma pessoa notívaga, aquelas que trocam a noite pelo dia sem problema nenhum.
O relógio com o vidro jateado um pavão ainda continuava a fazer tic tac. Já estava me incomodando.
Durante a madrugada é difícil o telefone ou a campainha tocarem. Também não se sente fome como de dia, em que temos horários pré determinados para alimentação, como almoço, chá da tarde,... A temperatura é mais amena. E o melhor, os palpiteiros de plantão estão dormindo. Na madrugada o mundo é perfeito, exceto pelo insistente tic tac do relógio.
Lembrei de quando era criança. Além do tic tac eu também não gostava de barulho do motor do carro. Não sei se acostumei com o ronco do motor ou se eles ficaram mais silenciosos, pois não me incomodam mais, diferente do persistente tic tac.
Meu tio Conrado, irmão do meu pai que morreu de acidente antes de eu nascer também não gostava de tic tac. Minha mãe sempre conta que certa vez ele dormiu em nossa casa, e minha caprichosa mãe se esmerou para receber o dileto cunhado.
Arrumou a cama com lençol de vira e colcha de piquet, colocou em cima da cômoda de três gavetas um ventilador, e no criado mudo ao lado da cama, além da toalhinha de crochê para o copo d'água não manchar a mobília, acrescentou um magnífico despertador prateado que acordou embrulhado em uma toalha de banho.
Vou fazer um parentes. Quando eu era pequena minha mãe colocava toalhinhas de crochê em todos os móveis. Geralmente era um jogo de cinco ou seis paninhos redondos sendo um de cada tamanho.
Ela colocava um em cima da penteadeira com um ponta jóias e outro com o pó de arroz. Na cômoda de três gavetas ela também colocava sob os santos dela e por último no criado mudo para o copo d'água não manchar o móvel.
Eu nunca gostei daquelas toalhinhas, achava jeca, mas sabia que se minha mãe tinha "vestido" os móveis era porque a visita que iria chegar era chique.
Ela achava aquilo tão chique que a primeira peça de enxoval que ela me deu foi um jogo de toalhinhas de penteadeira de renda renascença para eu colocar na minha casa quando casasse. Eu tinha apenas seis anos de idade, mas lembro bem desse dia dentro do Mercado Modelo na Bahia.
Vamos voltar ao tic tac...
Tinha 6 pra 7 anos (fiz 7 anos no hospital) estava passado muito mal. Nada parava no estômago.
Já tinha tomado sal de fruta, Leiba, pepsamar, sal amargo... e as tripas continuavam, insistentemente, querendo sair pela boca.
Já tinha ido ao Dr. João Galão, mas não tinha melhorado. As tripas ainda estavam tentando fugir. Era comer qualquer coisa e passava mal.
Tentaram um padre, Frei Beraldo, que ficava no Educandário, ganhei até um Nossa Senhora que tenho até hoje, mas o estômago não melhorava.
Até que alguém disse que isso era mal olhado. Que eu tinha de ir em uma benzedeira. Lá fui eu, vomitando até às tripas, na benzedeira.
Andar de carro para quem está ruim do estômago, só piora a situação e para mim piorava um pouco mais por causa do maldito barulho do motor.
Até hoje eu lembro onde era a casa dela. Sentamos em uma varanda. De repente a mulher jogou um terço no chão. Voou bolinha pra tudo quanto foi lado e ela exclamou: "o Conrado está aqui."
Conrado era o irmão do meu pai que faleceu de acidente de trânsito (por isso o ruído do motor do carro me incomodava, segundo a vidente). Ele morreu antes de eu nascer e ele também que não gostava de barulho de relógio, como eu. E para aumentar a coincidência o último presente que ele ganhou foi um terço, que a noiva colocou no bolso da camisa dele no caixão. Um terço parecido com o que a mulher tinha acabado de quebrar.
E eu continuava vomitando, mas tinha acabado de descobrir que era reencarnação do meu tio Conrado, segundo a benzedeira.
Até hoje eu não sei do que adiantou eu saber que era a reencarnação de alguém que não conheci (segundo a benzedeira), só sei que tive de ir mesmo assim para o hospital e ficar internada um bom tempo e só sai quando Dona Palmira, minha mãe preta, voltou a trabalhar em casa. Acho que minha doença era saudades da comida dela.
Voltando .
Mas o tic tac continuava a me irritar.
Resolvi por um fim na minha tortura. O relógio com um pavão jateado no vidro é de pêndulo, basta tirar o relógio do prumo, que ele para. Então, desse dia em diante, eu inclinava um pouco o relógio e o torturante tic tac parava e o relógio também, claro.
E toda manhã era o mesmo ritual. Meu pai levantava, abria a porta do corredor e a primeira coisa que ele olhava era para o relógio parado. Ele suspirava a seguinte frase: "o que é de raça, caça", se referindo a mim por não gostar de tic tac como meu tio Conrado. Se dirigia ao relógio, arrumava o prumo, dava corda, olhava pra mim e dizia : "a empregada deve ter tirado do prumo quando foi espanar." Sentava ao meu lado e tomava café.
Ele sabia que era eu que tinha mexido no relógio e iria voltar a tirar do prumo de novo à noite, mas não compensava iniciar uma briga por causa de um tic tac.
A gente só briga quando altera o saldo bancário e se essa alteração fizer muita diferença, porque brigar por picuinha é se desgastar por nada ou por um mero tic tac.
O texto vai para o meu tio Conrado, que eu não conheci.
Bjs.
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